quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Quando primeiro se aproximou da ideia de praticar kung-fu, colheu a informação que existia o kung-fu e o kung-fu tradicional. Decidiu prontamente pelo kung-fu tradicional, que parecia muito mais interessante, mesmo sem saber muito bem o que significa essa tal de tradição. A primeira resposta veio inclusive antes da pergunta serpentear na sua cabeça: o tradicional é aquele que os monges treinavam no templo. Assim, alimentado por filmes de arte marcial e seriados de televisão, se inscreveu na academia e foi aos poucos transformando seu jeito de andar, de falar, seu jeito de se vestir e demais hábitos de vida diária numa cópia de monge chinês com a quase inconsciência de ser imitação que sustentava com pilares tortos a sobrevivência do reflexo. Não se dava conta, mas a primeira abordagem ao conceito de tradição revelava uma ideia velha, imperturbavelmente ela mesma, quase inexaurível e quase eterna, afastada de qualquer solavanco, avessa a qualquer possibilidade de ruptura. Deve ter sido a ausência de movimento que condenou a ideia à estagnação, depois veio o fim da vida e se alimentou da carcaça. Nessa altura, ele teve que se afastar pra poder ver, e mais de longe o reflexo virou sombra. Foi muito depois que aprendeu que toda tradição nasce de uma ruptura. Uma onda que traz movimento ou um movimento que traz onda, engolindo as práticas anteriores para que o novo possa estabelecer-se como tradição. A ruptura que germina a tradição é ainda o movimento das rodas dentadas das suas entranhas, a cada geração um novo surge para conservar-se tradicional. Já os gregos haviam percebido a coesão em conflito dos conceitos opostos, esse jogo de ideias que se pertencem e se reclamam, que nascem de uma mesma raiz e se contrapõem para construir uma unidade dinâmica. A palavra tradição vem do latim: traditio. O verbo é tradire, e significa principalmente entregar, designa o ato de passar algo para outra pessoa, ou de passar de uma geração a outra geração. O verbo tradire tem também relações com o conhecimento oral e escrito. Isso quer dizer que, através da tradição, algo é dito e o dito é entregue de geração em geração. Bem certo que os gregos e o latim têm muito pouco ou nada a ver com os chineses, e como nunca estudou chinês para saber, não tinha a menor ideia da origem da palavra tradição no idioma asiático, e tampouco, se os possíveis usos e significados entrelaçam-se nas línguas diferentes. Ainda assim, aprende com o kung-fu de seu shi-fu a linguagem para expressar o que é seu próprio, e aos poucos se sente inscrevendo e sendo inscrito no conceito de tradição que cabe nas suas ideias.
 
Daniel M. Laks
02/09/2012