quarta-feira, 8 de julho de 2015



Meu avô é pessoa de muitas histórias. Meu avô é pessoa que fez da sua vida a missão de contar suas histórias – contar para nunca esquecer: Meu avô sobrevivente. Meu avô das histórias que lhe foram impostas. Muita gente conhece as histórias do meu avô sobrevivente, do meu avô memória viva da barbárie humana. Mas o meu avô é toda a alegria de estar vivo apesar das histórias que lhe forçaram. Meu avô que sempre conta e sempre ri de qualquer piada. Meu avô cheio de amigos, compromissos e sempre cheio de novas histórias. 

Teve uma vez que ele foi me buscar na escola. Eu estava saindo, do lado dele, quando um garoto chutou a minha mochila que estava nas minhas costas. Eu olhei pra trás, o garoto apontou paro lado e disse: -“foi ele”. Não fiz nada. Meu avô segurou a minha mão e ficamos parados ali. Quando o garoto passou, meu avô deu-lhe um chute na mochila, apontou para o lado e disse: -“foi ele”. 

Meu avô torce pro Flamengo! Quando ele chegou no Brasil, meu tio avô Tio Maurício levou ele pro Maracanã para ver Vasco e América. Meu tio Maurício era Vasco e queria que meu avô fosse Vasco também. Meu avô viu aquele time com a cruz de malta jogando feio contra o América, América que o salvara da guerra. Meu avô viu o gol e gritou: -“AMÉRICA!!!”. A situação quase ficou feia, mas no final ficou tudo bem: deu vitória do América. Naquele dia ele disse pro Tio Maurício: -“Eu sou judeu, não vou torcer pro time da cruz!”. O América ganhou aquele dia mas já ia mal das pernas. Meu avô escolheu ser Flamengo!

Sushi era comida japonesa. Peixe cru com ou sem arroz. Meu avô odiava sushi. Isso foi ainda antes dele experimentar sushi pela primeira vez. A gente ia pro restaurante japonês e ele só comia macarrão ou coisa frita. Tinha nojo do sushi. Aí, uma vez, ele foi convidado para um jantar na casa do cônsul do Japão em homenagem ao aniversário do Imperador. O cônsul ofereceu sushi pra ele e ele não teve como negar. Pegou um, venceu o nojo e colocou na boca. A parir desse dia o meu avô ama sushi. 

Quando eu era pequeno o meu avô era Vovô Quique. Eu estava chorando e ele não sabia mais o que fazer para me acalmar. Foi quando ele vestiu uma peruca, me pegou no colo e disse: -“olha o cabelo do Vovô Quique”. A foto dele de peruca comigo no colo está na sala da casa dele até hoje, perto de tantas outras fotos e tantas outras histórias. 

Meu avô está internado na UTI do Copa D’or. O quadro dele se agravou nos últimos dias e ele teve que ser induzido ao coma e ligado ao ventilador mecânico. 

Meu avô é parte de mim e de todo mundo que partilha das suas histórias.


Daniel M. Laks
8-07-2015.

segunda-feira, 6 de julho de 2015



Desculpem-me os bem intencionados, mas não, não somos todos Maju. Não somos todos Maju, porque eu, que sou homem e sou branco não compartilho do mesmo lugar de fala de uma jovem mulher negra. Não somos todos Maju, porque eu nunca saí na rua com medo de ser estuprado. Não somos todos Maju, porque eu nunca fui chamado de macaca. Não somos todos Maju, porque eu nunca fui chamado de preta filha da puta ou de crioula safada. Não somos todos Maju, porque nunca disseram que o meu cabelo é ruim e nunca duvidaram da minha competência dizendo que só cheguei onde cheguei por causa de cotas. Por isso não somos todos Maju. Porque pessoas como eu, por melhor intencionadas que estejam, jamais compartilharão do referencial para entender o que é estar na pele de uma mulher negra no Brasil. Sim, alguns de nós tentamos ser contra o racismo. Eu, pelo menos, tento ser contra o racismo. Mas ser contra o racismo sendo branco é reconhecer que o racismo é um sistema de oportunidades desiguais que permeia todas as nossas relações. E nesse sistema, não sou eu o prejudicado. Dizer que somos todos Maju é fingir que o preconceito nos atinge a todos da mesma maneira. Dizer que somos todos Maju é dizer que não existe racismo ou machismo, enquanto formas institucionalizadas no Brasil, que me enchem de privilégios enquanto desumanizam e subalternizam pessoas como a Maju. Dizer somos todos Maju é não reconhecer as regalias de ser branco num país racista. Dizer somos todos Maju é falsear o nosso próprio lugar de fala e perpetuar a absurda farsa de que vivemos em uma democracia racial onde o que aconteceu com a Maju só existe enquanto exceção. Por isso, não, não somos todos Maju. Eu não falo do mesmo lugar de uma jovem mulher negra, mas do lugar de um homem branco em um país racista chamado Brasil.


Daniel M. Laks
06-07-2015.