segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Se romances navegassem em palavras aportaria um das nossas conversas. Por isso os dedos de esfinge. Não se trata de sulcar o lápis recém amolado até navalhar falas espontâneas de amor rasgado. Não tenho você para além das marcas textuais. Com um pouco de nanquim talvez pudesse inventar aos olhos algum arbítrio para contrariar os lábios, para se perder em labirintos rasurando o contorno dos corpos. Porque falta entre as minhas palavras e o seu corpo, entre o meu corpo e as suas palavras uma intimidade física para além desse bloco de letras. Por isso que às vezes sinto que deveria lhe escrever em outra língua. Uma língua outra ou dialeto qualquer, contanto que fosse outra. Contanto que fosse, mesmo que só um pouco, afastada de mim, distante como a saudade. Contanto que fosse, mesmo que só um pouco, bastarda às minhas emoções, alforriada da minha carne. Língua diferente da língua que eu sinto. Porque depois de evaporar de silêncio aqui sempre chove em palavras, e é por isso mesmo que tenho com elas essa intimidade líquida. Se fosse por grafite ou pedaços de carvão eu virava do avesso e desenhava alguma sensualidade mais áspera nas curvas, uma loucura de fim de ato no fechar de cortinas das letras, mais atrito ao interromper as sílabas de almas sujas de canções. Porque gesto e corpo é mais preciso do que texto e ponto para ser voz além da fuligem dos lábios. E palavras sempre escapam do morder dos muros para deixarem de ser expressões de alguma representação ornamentada, e deixarem de ser costura de vidro estilhaçado para mosaico de real na fronteira dos sonhos, e deixarem de ser sentido, signo, memória ou corpo se tornando som para deixarem de ser.

Daniel M. Laks

24/10/2011

domingo, 18 de setembro de 2011

A boca quase junto à minha a desenhar frutos vermelhos a respirar pra cima é muito importante lembrar-se de respirar enquanto os pés ainda tocam o chão tenho pensado em usar mais contrações pra aproximar as palavras os corpos os copos num brinde de mãos distantes os mitos vivem das suas potências as quedas d’água têm mais pressa está ouvindo o barulho ao fundo deve ser tambor acho que hoje é dia de dança esquece mais os óculos o sol se planta em qualquer lugar ainda não assisti àquele filme a gente devia viajar pro meio do caminho por um pouco mais de saliva escrevia um poema com menos pausas menos deuses muito castos pro clima tropical menos quinas pra perfume nas flores de papel tem areia fina de chão os pássaros daqui estão por demais desgastados pro azul do céu acho que não vou divulgar este texto entre as paredes do quarto ainda se esconde atrás de perguntas quanto custa uma passagem pro sul qual é mesmo a cor dos seus olhos em meio às pontes de tinta?

Daniel M. Laks
18/09/2011

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Como se não bastassem as últimas espirais de luz a latejar na atmosfera improvisando o azul, a moça ainda tinha nos olhos o contorno abrupto dos naufrágios. Eu do lado avesso de mim a fabular caravelas de papel rumo ao farol. Nenhuma gota de terra no céu. Apenas minhas alegrias de por do sol engarrafadas em tubos plásticos de tinta preta a lamber o oceano de nuvens. Essa parece um carneiro, essa outra parece um dragão e já esta outra tem um formato de tubarão que aos poucos vai ganhando pulmões e patas e presas de marfim até se transformar num elefante africano que se desfaz tão de repente quanto minhas sílabas relampejadas e já deixa de ser elefante e palavra e nuvem e já deixa de ser peito em brasa embrulhado pra presente em arame farpado. Ainda nenhuma gota de céu na terra. Como se não bastasse o contorno abrupto dos naufrágios nos olhos da moça, as últimas espirais de luz ainda latejavam na atmosfera improvisando o azul. Depois tem pressa que hoje o tempo é líquido e daqui a pouco precipita chover.

Daniel M. Laks
26/08/2011

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Não deve ser nada. Não sei bem o que é e por isso mesmo não deve ser nada. Porque às vezes quando acordo. Quando acordo não, quando tento dormir. Realmente não deve ser nada, só um desconforto. Quem não sente um desconforto de vez em quando? Porque parando pra pensar não tem motivo pra ser nada e não consigo explicar o que é além de dizer que às vezes quando tento dormir e minhas pernas tremem, que às vezes já é hora de acordar e minhas pernas não se movem, e eu tento ainda me esconder onde não está mais lá e já não estava lá quando eu. Mas certamente não é nada além de um desconforto, quanto a isso pode confiar em mim. Um vazio desses que não pode se explicar por vazio porque às vezes aperta e alarga e sufoca em excesso, e vazio não pode ser excesso e excesso não pode ser vazio, e por isso, por não saber o que é além de um desconforto que se disfarça em opostos e que precisaria de uma palavra outra que não desconforto pra explicar, não deve ser nada. Ou pelo menos não deve ser nada que se possa dar nome porque já tentei dizer que é angústia, ansiedade, insônia, agonia, aflição e já tentei diluir em água, álcool, solvente, corridas de carro, acordes de violão e sinceramente não deve ser nada além de uma vontade louca de ter vontade de alguma coisa que não seja parar um pouco. Parar não sei bem com o que, mas definitivamente parar, porque deve ser algumas coisa que me faz sentir assim desse jeito nuvem que eu não sei explicar e me pergunto sempre se realmente é alguma coisa logo antes de dizer que não deve ser nada além de um desânimo passageiro desses que todo mundo sente de vez em quando. Desses que deveria passar logo, que vai passar logo, que não deve ser nada além de uma dificuldade passageira de entender sentidos, de dar significados. Não sei se todo mundo tem essa vontade, digo, a vontade de entender significados. Sem perguntas fáceis que façam a pessoa parecer inteligente. Uma vontade dessas de perceber sem ilusões porque eu entendo que as ilusões são necessárias pra quem as tem, mas as minhas já estão tão gastas de poemas e fotografias e telefonemas e telenovelas e explicações e ausências que certamente não me servem pra outro motivo que não evitar as rimas. Evitar que as palavras que eu alugo pra falar de mim se abracem com outras palavras porque acho que falam melhor sozinhas. Porque acho que nesse momento falam melhor sozinhas. Mesmo sem saber dizer o que é essa coisa que na verdade é só muito nada apertado e comprimido dentro de mim e em volta de tudo enquanto todo mundo se esbarra ou se agride ou se ama ou medita ou faz qualquer outra merda sem sentido pra dar sentido ou simplesmente pra alienar qualquer capacidade de qualquer coisa dizendo que não deve ser nada, só um desconforto antes de dormir que todo mundo sente em algum momento. Só um desconforto ao acordar que eu pergunto se as outras pessoas sentem sem realmente estar interessado em saber se as outras pessoas sentem, porque não acho que seja uma questão de identificação com um padrão de normalidade que me faz sentir assim. Às vezes não é nada mais do que não saber o que dizer. Nada mais do que ter vontade de não ser mais nuvem estilhaçada de palavras alugadas sem rimas porque falam melhor sozinhas, porque falam melhor em ausência de alguma coisa que não deve ser nada, que não sei bem o que é e por isso mesmo não há de ser nada.

Daniel M. Laks
13/06/2011