segunda-feira, 8 de abril de 2019

O Brasil não tem pena de morte.
O morto daqui nunca tem razão
O Brasil tem pena de patrão,
Empresário e banqueiro.
Pra ser digno de sentimento,
Tem que ter dinheiro,
Poder e influência
Em esfera nacional.

Hoje, anunciaram a notícia
Com rostos sérios no telejornal:
Na nota oficial,
O atirador militar reagiu,
Um homem morto
Com oitenta tiros de fuzil,
Estava desarmado,
Mas atirou primeiro.

E todo dia morre mais um preto,
Culpado por nascer brasileiro.
Com furadeira ou guarda-chuva,
Para justificar a versão
publicada na página policial.
O Brasil não tem pena da morte
De quem nasceu sem sorte.
Marginal.

Daniel M. laks
08-04-2019

segunda-feira, 10 de setembro de 2018


As pessoas se reuniram nesse dia
Na frente da televisão
Sem grande dor ou comoção
Para ver a morte da democracia.

Foi transmitida em rede nacional.
Morreu sufocada,
coitada,
Num último suspiro sem palavra final.

Mas mesmo com seu corpo estirado
E seu legado negado
Especialistas garantiram
Que estava viva e pulsante no jornal

Por isso não houve velório,
Nem missa de sétimo dia.
Apenas o mesmo repertório
De mentiras sobre progresso e soberania.

Generais, juízes, banqueiros e companhia
ventrilocaram suas mentiras pelos jornalistas de plantão
No dia da morte da democracia
Transmitida ao vivo na televisão.

E a população se sentiu segura
Que tudo seguia o script de mais um dia normal.
Agora interrompemos esse poema
para um comunicado oficial.

Daniel M. Laks
10-09- 2018

quinta-feira, 24 de setembro de 2015



Poderia descrever a aparência de Helenice, começar pela cor dos olhos ou pelo jeito do cabelo, mas isso em nada ajudaria a explicar a existência de Helenice, a mãe, a morte e o canário. Se descrevesse o corpo de Helenice tinha por aqui tudo, de repente, resolvido. Haveria ali uma pessoa Helenice, com uma história de Helenice, que sempre faz, age e é Helenice. Estranho como toda a complexidade humana parece caber dentro da descrição de um corpo, seja no espaço que se inscreve ao esqueleto, no espaço que extravasa os sonhos ou na interseção dos dois. Mas não, Helenice não é a cor dos seus olhos, o jeito de seu cabelo ou o conteúdo de seus sonhos. Helenice queria inclusive ter mudado o corte de cabelo. Antes da mãe no hospital e das constantes brigas em família para decidir quem cuida do canário que precisa de comida, bebida e jornal. Chegou a sonhar que mudou o corte de cabelo. Marcou hora no cabelereiro mas não foi. Nem o sonho permitia algo diferente. Agora não poderia mais mudar o cabelo, mudar os olhos, mudar o sonho. Agora nada mais tinha importância se não a mãe, o canário e a morte, os três juntos na gaiola sem saber voar e ela Helenice, nem sonho nem corpo, vertigem. Mas, se a existência de Helenice não se explica pela soma das partes que compõem Helenice, Helenice também não se explica pelo nada. Helenice está antes ligada ao não ser. E o não ser é sempre muito diferente do nada. O nada é uma substância sem forma, sem sonhos e sem cor, enquanto Helenice tem a forma de Helenice, os sonhos de Helenice e a cor de vertigem: sensação de movimento oscilatório ou giratório do próprio corpo ou do entorno com relação ao corpo. Helenice é ritmo e vertigem. Helenice se dá conta que as batidas do seu coração marcam seu tempo no mundo. Cada tum-tum é um compasso a menos, um passo mais próximo da morte. E Helenice adquire as cores da fraqueza, do desmaio, do desfalecimento diante do conceito da morte, da mãe no hospital, do canário na gaiola e ela, Helenice, tonteira, tontura, desmaio. Antes, o ritmo para Helenice era mais do que a métrica para o abismo. Antes o ritmo era música e a música era mãe. Antes o canário era apenas o canário da mãe e era também música. E a mãe de Helenice passava os dias escrevendo partituras para piano. Mãe e canário passavam os dias localizando notas em linhas de grade. Agora que sua mãe está internada em estado grave no hospital e parece que não há mais nada a se fazer a não ser decidir quem toma conta do canário, as barras de compasso que marcam as partituras aparecem como algo de macabro para Helenice. A cifra do tempo em que ficamos na gaiola sem aprender a voar. E ritmo e morte se confundem com a imagem da mãe, que cada vez mais adquire as cores da vertigem tão próprias para tingir os olhos de Helenice. Helenice só queria trair a tudo. Trair a tudo e não cuidar do canário. Trair é sair da ordem e se entregar ao desconhecido, e o desconhecido pode ser tudo, menos um canário e a sua partitura, menos o hospital um passo mais próximo do abismo, menos a mãe na gaiola onde ventiladores artificiais e monitores cardíacos são a fronteira entre a música e a morte. Helenice só queria se entregar ao desconhecido que escapasse à própria ideia de morte. Helenice não imagina nada mais bonito do que partir para o desconhecido que a vertigem lhe impede de alcançar. E a vertigem, assim como a morte, não tem nem olhos e nem ouvidos para as súplicas de Helenice. E é a vertigem que impede Helenice de trair a tudo. E é a vertigem que dirige Helenice como um corpo em queda, pulsão e recusa, até a casa da mãe. E Helenice se aproxima da gaiola para achar o canário já sem música, canário prenúncio, canário morto minutos antes do anúncio da morte da mãe, no compasso pausado da fala da irmã.


Daniel M. Laks
23-09-2015.

quarta-feira, 8 de julho de 2015



Meu avô é pessoa de muitas histórias. Meu avô é pessoa que fez da sua vida a missão de contar suas histórias – contar para nunca esquecer: Meu avô sobrevivente. Meu avô das histórias que lhe foram impostas. Muita gente conhece as histórias do meu avô sobrevivente, do meu avô memória viva da barbárie humana. Mas o meu avô é toda a alegria de estar vivo apesar das histórias que lhe forçaram. Meu avô que sempre conta e sempre ri de qualquer piada. Meu avô cheio de amigos, compromissos e sempre cheio de novas histórias. 

Teve uma vez que ele foi me buscar na escola. Eu estava saindo, do lado dele, quando um garoto chutou a minha mochila que estava nas minhas costas. Eu olhei pra trás, o garoto apontou paro lado e disse: -“foi ele”. Não fiz nada. Meu avô segurou a minha mão e ficamos parados ali. Quando o garoto passou, meu avô deu-lhe um chute na mochila, apontou para o lado e disse: -“foi ele”. 

Meu avô torce pro Flamengo! Quando ele chegou no Brasil, meu tio avô Tio Maurício levou ele pro Maracanã para ver Vasco e América. Meu tio Maurício era Vasco e queria que meu avô fosse Vasco também. Meu avô viu aquele time com a cruz de malta jogando feio contra o América, América que o salvara da guerra. Meu avô viu o gol e gritou: -“AMÉRICA!!!”. A situação quase ficou feia, mas no final ficou tudo bem: deu vitória do América. Naquele dia ele disse pro Tio Maurício: -“Eu sou judeu, não vou torcer pro time da cruz!”. O América ganhou aquele dia mas já ia mal das pernas. Meu avô escolheu ser Flamengo!

Sushi era comida japonesa. Peixe cru com ou sem arroz. Meu avô odiava sushi. Isso foi ainda antes dele experimentar sushi pela primeira vez. A gente ia pro restaurante japonês e ele só comia macarrão ou coisa frita. Tinha nojo do sushi. Aí, uma vez, ele foi convidado para um jantar na casa do cônsul do Japão em homenagem ao aniversário do Imperador. O cônsul ofereceu sushi pra ele e ele não teve como negar. Pegou um, venceu o nojo e colocou na boca. A parir desse dia o meu avô ama sushi. 

Quando eu era pequeno o meu avô era Vovô Quique. Eu estava chorando e ele não sabia mais o que fazer para me acalmar. Foi quando ele vestiu uma peruca, me pegou no colo e disse: -“olha o cabelo do Vovô Quique”. A foto dele de peruca comigo no colo está na sala da casa dele até hoje, perto de tantas outras fotos e tantas outras histórias. 

Meu avô está internado na UTI do Copa D’or. O quadro dele se agravou nos últimos dias e ele teve que ser induzido ao coma e ligado ao ventilador mecânico. 

Meu avô é parte de mim e de todo mundo que partilha das suas histórias.


Daniel M. Laks
8-07-2015.

segunda-feira, 6 de julho de 2015



Desculpem-me os bem intencionados, mas não, não somos todos Maju. Não somos todos Maju, porque eu, que sou homem e sou branco não compartilho do mesmo lugar de fala de uma jovem mulher negra. Não somos todos Maju, porque eu nunca saí na rua com medo de ser estuprado. Não somos todos Maju, porque eu nunca fui chamado de macaca. Não somos todos Maju, porque eu nunca fui chamado de preta filha da puta ou de crioula safada. Não somos todos Maju, porque nunca disseram que o meu cabelo é ruim e nunca duvidaram da minha competência dizendo que só cheguei onde cheguei por causa de cotas. Por isso não somos todos Maju. Porque pessoas como eu, por melhor intencionadas que estejam, jamais compartilharão do referencial para entender o que é estar na pele de uma mulher negra no Brasil. Sim, alguns de nós tentamos ser contra o racismo. Eu, pelo menos, tento ser contra o racismo. Mas ser contra o racismo sendo branco é reconhecer que o racismo é um sistema de oportunidades desiguais que permeia todas as nossas relações. E nesse sistema, não sou eu o prejudicado. Dizer que somos todos Maju é fingir que o preconceito nos atinge a todos da mesma maneira. Dizer que somos todos Maju é dizer que não existe racismo ou machismo, enquanto formas institucionalizadas no Brasil, que me enchem de privilégios enquanto desumanizam e subalternizam pessoas como a Maju. Dizer somos todos Maju é não reconhecer as regalias de ser branco num país racista. Dizer somos todos Maju é falsear o nosso próprio lugar de fala e perpetuar a absurda farsa de que vivemos em uma democracia racial onde o que aconteceu com a Maju só existe enquanto exceção. Por isso, não, não somos todos Maju. Eu não falo do mesmo lugar de uma jovem mulher negra, mas do lugar de um homem branco em um país racista chamado Brasil.


Daniel M. Laks
06-07-2015.

terça-feira, 9 de junho de 2015

O protesto de nenhuma minoria deve ser pautado pelas formas simbólicas da maioria. Não cabe aos brancos legitimar ou não o protesto de negros que lutam por igualdade de direitos numa sociedade racista. Não cabe a religiosos legitimar ou não o protesto de grupos ateus num Estado laico. Não cabe a heterossexuais legitimar ou não o protesto de grupos homossexuais em uma sociedade homofóbica. Não cabe aos homens legitimar ou não os protestos feministas em uma sociedade patriarcal. Não cabe a ateus legitimar ou não o protesto de religiosos em uma sociedade que assegura a todos o direito à livre expressão religiosa.

Quem foi que nomeou os grupos que se sentem no direito de dizer "isso não pode", "assim é falta de respeito e não protesto", "eles não podem usar esse símbolo para dizer isso"? Quem foi que definiu o que cada símbolo pode ou não querer dizer e quais os grupos que podem, legitimamente, utilizar cada símbolo? O arco-íris, por exemplo, representa um símbolo LGBT ou um símbolo hippie de psicodelia? Ou será que representa uma divindade do candomblé? Ou ainda, a aliança bíblica entre Deus e seu povo? Ou representa todas as alternativas anteriores e muitas outras ainda, dependendo dos olhos do observador? E a imagem de Jesus, representa o revolucionário libertário ou o conservador? Representa o discurso da paz ou a justificação para uma "guerra santa"? Representa a hierarquia e o direito de governança legitimado por uma ascendência divina ou o ideal de igualdade entre todos os seres humanos? Em suma, representa uma única coisa ou vive em um constante estado de tensão entre diferentes estratégias de representação, suscitadas por diferentes grupos, para legitimar as suas causas específicas? 

Nenhum símbolo emana um significado direto e unívoco. Esses significados são, antes, atribuídos pelos diferentes grupos para legitimar as suas causas em uma verdadeira batalha por mentes e intelectos. Nos tempos onde as versões e as contraversões convivem em tensão à vista de todos, fica fácil de se perceber como a relação entre um símbolo e uma ideia é uma batalha ideológica. Não vejo nenhum problema em utilizar a imagem da crucificação de cristo em um protesto LGBT (e se visse, também não caberia a mim julgar se é legítimo ou não, se pode ou não), assim como também não vejo nada de estranho na reação de grupos religiosos (também não caberia a mim julgar se a reação de grupos religiosos é legítima ou não). Precisamos entender que a democracia tem que ser inclusiva e priorizar o debate ao invés do silenciamento do divergente. Precisamos também entender que não nos cabe definir quais são as formas válidas de protesto para grupos dos quais não fazemos parte.

Daniel M. Laks
09-06-2015