sábado, 28 de fevereiro de 2009

Descontinuidade

Esboçou sarcasmo entre os lábios e riu de si mesmo, como se de repente recuperasse sua sobriedade de idéias. Criara expectativas, plano de ação, diferentes opções para apresentar, havia pensado o dia inteiro no que ia dizer. Agora recobrava a perspectiva descrente que preferira adotar, recebera mais uma confirmação de sua necessidade. Entendia sua parcela de responsabilidade nas decepções, afinal, faltara-lhe inteligência visceral para ler as pequenas mensagens deixadas entre cada abrir e fechar de boca e levianamente deixou-se acreditar no que desejava que acontecesse. Não importava mais, havia preenchido as lacunas de seu desencontro sozinho, e não lhe fazia diferença a exatidão de suas respostas, para ele era tão verdade quanto qualquer outra construção lógica que acreditasse. Pensou na última vez que havia desbravado as barreiras de seu desinteresse alheio e convidado alguém que lhe remete-se a algo genuíno para sair, passaram-se cinco meses. Interrompeu suas abstrações anacrônicas com um cigarro. Algo no gesto de soprar a fumaça lhe garantia um aspecto analítico. Olhou para a garrafa de vinho que comprara, preferiu bebê-la a deixar que avinagrasse por um telefonema não atendido, por um combinado não cumprido. Caminhou lentamente até o armário da sala onde guardava o par de taças de cristal que esperava pacientemente ser partilhado, mas só foi capaz de demarcar a amplitude de sua solidão quando viu uma das taças escorrer por entre seus dedos e se espalhar no chão ocre de taco envernizado.


Daniel M. Laks

28/02/2009

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Desencontro

Olhou pra ela disfarçando qualquer coisa que pudesse transparecer. Trazia dentro de si uma baixa estima que projetava em tudo para confirmar a necessidade de seu cinismo. Entendia, observando gestos corriqueiros, quase todos que o cercavam, mas nunca havia sido capaz de entender a si mesmo. Talvez por isso tivesse se interessado por ela tão abruptamente, não era capaz de decifrá-la e tinha dúvidas se realmente queria, afinal, porque perder o objeto de seus devaneios? De repente ela se aproximou, contraiu a boca como se fosse sorrir, não sorriu. Perguntou algo que ele não foi capaz de entender. Estava completamente hipnotizado pelo jeito moderado da falta de compromisso da moça, e pela cor do batom em sua boca, que para ele era vermelho, mas na verdade chamava-se magenta, dessas coisas que falta sensibilidade aos homens pra perceber. Ela cortou-lhe a fantasia com uma interjeição. Ele fingiu procurar o telefone no bolso esquerdo, como se talvez a resposta para aquela pergunta estivesse também guardada em seu bolso esquerdo. Por fim respondeu de forma aberta, dizendo um mais ou menos e fazendo-lhe a replica, e você? Não esperou para ouvir resposta, voltou a mergulhar em seus delitos de fragilidade dominante. Observava a maneira como a moça talhava o ar a sua volta com movimentos contidos enquanto roubava toda a graça que conseguia captar. Ponderava se ela seria capaz de entender a maldição de sua beleza. Lembrou-se da fé que mantinha em suas descrenças, por vezes lente pra amplificar seus processos e em outras uma neblina alva para fazê-los desaparecer. Pensou em convidá-la para sair. Se recebesse um sim não precisaria mais de seu cinismo. Mas preferiu mergulhar em sua caneta repleta de cenas e apenas contrair o rosto, sem sorrir.


Daniel M. Laks
18/02/2009

Estradas cruzadas do meu destino

Despi-me de toda aparência anônima
Das cartilhas de boas maneiras.
Aprendi a interpretar com voz tensa
O trânsito das pequenas coisas ao meu redor.
Apressado, saqueei parte do meu passado,
Para que a ausência não se alimentasse de mim.
Esperei do tempo paciência e perspectiva.
Hoje acordei de frente as estradas cruzadas do meu destino.

Daniel M. Laks
18/02/2009