quinta-feira, 24 de setembro de 2015



Poderia descrever a aparência de Helenice, começar pela cor dos olhos ou pelo jeito do cabelo, mas isso em nada ajudaria a explicar a existência de Helenice, a mãe, a morte e o canário. Se descrevesse o corpo de Helenice tinha por aqui tudo, de repente, resolvido. Haveria ali uma pessoa Helenice, com uma história de Helenice, que sempre faz, age e é Helenice. Estranho como toda a complexidade humana parece caber dentro da descrição de um corpo, seja no espaço que se inscreve ao esqueleto, no espaço que extravasa os sonhos ou na interseção dos dois. Mas não, Helenice não é a cor dos seus olhos, o jeito de seu cabelo ou o conteúdo de seus sonhos. Helenice queria inclusive ter mudado o corte de cabelo. Antes da mãe no hospital e das constantes brigas em família para decidir quem cuida do canário que precisa de comida, bebida e jornal. Chegou a sonhar que mudou o corte de cabelo. Marcou hora no cabelereiro mas não foi. Nem o sonho permitia algo diferente. Agora não poderia mais mudar o cabelo, mudar os olhos, mudar o sonho. Agora nada mais tinha importância se não a mãe, o canário e a morte, os três juntos na gaiola sem saber voar e ela Helenice, nem sonho nem corpo, vertigem. Mas, se a existência de Helenice não se explica pela soma das partes que compõem Helenice, Helenice também não se explica pelo nada. Helenice está antes ligada ao não ser. E o não ser é sempre muito diferente do nada. O nada é uma substância sem forma, sem sonhos e sem cor, enquanto Helenice tem a forma de Helenice, os sonhos de Helenice e a cor de vertigem: sensação de movimento oscilatório ou giratório do próprio corpo ou do entorno com relação ao corpo. Helenice é ritmo e vertigem. Helenice se dá conta que as batidas do seu coração marcam seu tempo no mundo. Cada tum-tum é um compasso a menos, um passo mais próximo da morte. E Helenice adquire as cores da fraqueza, do desmaio, do desfalecimento diante do conceito da morte, da mãe no hospital, do canário na gaiola e ela, Helenice, tonteira, tontura, desmaio. Antes, o ritmo para Helenice era mais do que a métrica para o abismo. Antes o ritmo era música e a música era mãe. Antes o canário era apenas o canário da mãe e era também música. E a mãe de Helenice passava os dias escrevendo partituras para piano. Mãe e canário passavam os dias localizando notas em linhas de grade. Agora que sua mãe está internada em estado grave no hospital e parece que não há mais nada a se fazer a não ser decidir quem toma conta do canário, as barras de compasso que marcam as partituras aparecem como algo de macabro para Helenice. A cifra do tempo em que ficamos na gaiola sem aprender a voar. E ritmo e morte se confundem com a imagem da mãe, que cada vez mais adquire as cores da vertigem tão próprias para tingir os olhos de Helenice. Helenice só queria trair a tudo. Trair a tudo e não cuidar do canário. Trair é sair da ordem e se entregar ao desconhecido, e o desconhecido pode ser tudo, menos um canário e a sua partitura, menos o hospital um passo mais próximo do abismo, menos a mãe na gaiola onde ventiladores artificiais e monitores cardíacos são a fronteira entre a música e a morte. Helenice só queria se entregar ao desconhecido que escapasse à própria ideia de morte. Helenice não imagina nada mais bonito do que partir para o desconhecido que a vertigem lhe impede de alcançar. E a vertigem, assim como a morte, não tem nem olhos e nem ouvidos para as súplicas de Helenice. E é a vertigem que impede Helenice de trair a tudo. E é a vertigem que dirige Helenice como um corpo em queda, pulsão e recusa, até a casa da mãe. E Helenice se aproxima da gaiola para achar o canário já sem música, canário prenúncio, canário morto minutos antes do anúncio da morte da mãe, no compasso pausado da fala da irmã.


Daniel M. Laks
23-09-2015.