segunda-feira, 14 de junho de 2010

O conto da cidade desaparecida – parte I – O profeta e o relógio da sacerdotisa do tempo

Desenho de Marco Lourenço



Tudo começou com a construção do relógio central quando havia apenas um grande descampado com algumas árvores esparsas. Ninguém sabe direito quem construiu e quanto tempo durou o processo. Alguns dizem que foi um homem solitário, um eremita que dedicou suas últimas duas décadas de vida a descobrir o segredo do tempo, e quando finalmente entendeu o correr das areias na ampulheta decidiu fazer aquele relógio enorme sem nenhuma engrenagem. Eu já ouvi outras lendas sobre o relógio e seu construtor, há quem conte que o construtor era um jovem apaixonado por um amor incerto e que o relógio foi a maneira que ele encontrou de se acertar com o tempo depois de perder seu amor de forma trágica. O Antônio, que ninguém sabe se bêbado ou louco, todos os dias ao cair da noite vai pro meio da praça central e diz aos gritos, como numa profecia, que ele construiu aquele relógio quando tocou as mãos da sacerdotisa do tempo que é também a deusa do esquecimento, e que o relógio pararia de funcionar uma semana antes da cidade começar a desaparecer. O que se sabe com certeza é que existe o relógio sem engrenagens no meio da praça central da cidade e que esse é o relógio mais pontual do mundo. Dizem que é tão pontual que qualquer casal que dê as mãos na praça às seis badaladas do gongo terá o ritmo dos seus corações sincronizados perfeitamente para todo o sempre. A lenda foi se espalhando assim por todos os povoados em volta do descampado onde hoje é a cidade, e pessoas de todos os cantos começaram a chegar e construir casas, ruas, vendas até que tudo ficou assim como é hoje. Eu vim pra cá garoto, quando meus pais ainda eram vivos e as crianças ainda paravam para escutar o Antônio, ao cair da noite na praça, repetir sempre a mesma profecia: o relógio vai parar de funcionar uma semana antes da cidade começar a desaparecer. A maioria dos meninos achava graça daquela figura desengonçada, mal vestida e suja falando sempre a mesma loucura pontualmente todos os dias, mas eu sempre fiquei curioso para saber o que aconteceu para que o Antônio ficasse assim desse jeito. Hoje eu tenho vinte anos, desde que cheguei nunca saí daqui e conheço cada canto da cidade e cada pessoa que passa por cada rua. Meu passatempo preferido é desenhar mapas da cidade e já faço isso há uns cinco anos. Comecei com mapas das ruas, depois fui acrescentando as casas, as vendas e as pessoas, de forma que hoje posso dizer que conheço tudo e todos por aqui. Sempre, ao cair da noite, vou pra frente do relógio escutar o Antônio esbravejar sua profecia embriagada de álcool ou loucura para ninguém, mas nos últimos três dias ele não apareceu na praça. Tentei procurá-lo por todos os cantos, mas ninguém sabe dele e ninguém além de mim parece se importar com seu desaparecimento.


Daniel M. Laks

14/06/2010

Um comentário:

Nanda disse...

Dani, que lindo ver que te superas cada dia e em cada frase. Pode ser amor de amiga, e olhos de afeto, mas já te tenho na minha lista dos preferidos!